quarta-feira, 30 de julho de 2014

HUMANISMO - TEATRO DE GIL VICENTE (1531).


Todo Mundo e Ninguém - Auto da Lusitânia - Gil Vicente (1531).TEATR

Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demônios (Belzebu e Dinato) tecem comentários espirituosos, fazem trocadilhos, procurando evidenciar temas ligados à verdade, à cobiça, à vaidade, à virtude e à honra dos homens. 
Representada pela primeira vez em 1532, como parte de uma peça maior, chamada Auto da Lusitânia (no século XVI, chama-se auto ao drama ou comédia teatral), a obra é de autoria do criador do teatro português, Gil Vicente
Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém:
Que andas tu aí buscando?
Notas de tradução
Todo o Mundo:
Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
 
porém ando
 porfiando
por quão bom é porfiar.
 
Porfiando: insistindo, teimando.
Ninguém:
Como hás nome, cavaleiro?
O verbo haver nestes versos tem o sentido de ter.
Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e
 sempre nisto me fundo.
E sempre nisto me fundo: e sempre me baseio neste princípio, nesta idéia.
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém, 
e busco a consciência.
Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
 
Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que ninguém busca consciência. 
e todo o mundo dinheiro.
 

Ninguém:
E agora que buscas lá?
Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.
Ninguém:
E eu virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu:
Outra adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra todo o mundo
e ninguém busca virtude.
Adição: acrescentamento.
Acude: ocorre.

Ninguém:
Buscas outro mor bem qu'esse?
A palavra mor, muito pouco empregada atualmente, é uma forma abreviada de maior. Poderíamos dizer, pois:
buscas outro maior bem...
Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém:
E eu quem me repreendesse 
em cada cousa que errasse.
 
Belzebu:
Escreve mais.
Dinato:
Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer em extremo grado
todo o mundo ser louvado,
 
e ninguém ser repreendido.

Ninguém:
Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo:
Busco a vida a quem ma dê.
Ma: me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e direto, respectivamente.
Ninguém:
A vida não sei que é, 
a morte conheço eu.
Belzebu:
Escreve lá outra sorte.
Dinato:
Que sorte?
Belzebu:
Muito garrida:
Todo o mundo busca a vida
e ninguém conhece a morte.
 
Garrida: engraçada.

Todo o Mundo:
E mais queria o paraíso, 
sem
 mo ninguém estorvar.
Mo: me+o. Contração do pronome objeto indireto me com o pronome demonstrativo objeto direto o. Entenda-se no texto: sem ninguém estorvar isto a mim. 
Estorvar: atrapalhar.
Ninguém:
E eu ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
 
Ponho: entenda-se: proponho.
Belzebu:
Escreve com muito aviso.
Dinato:
Que escreverei?
Belzebu:
Escreve
que todo o mundo quer paraíso
e ninguém paga o que deve.
 

Todo o Mundo:
Folgo muito d'enganar, 
e mentir nasceu comigo.
Folgo: tenho prazer, gosto.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que todo o mundo é mentiroso, 
E ninguém diz a verdade.

Ninguém:
Que mais buscas?
Todo o Mundo:
Lisonjear.
Lisonjear: elogiar.
Ninguém:
Eu sou todo desengano.
Belzebu:
Escreve, ande lá, mano.
Dinato:
Que me mandas assentar?
Belzebu:
Põe aí mui declarado, 
não te fique no tinteiro:
Todo o mundo é lisonjeiro,
 
e ninguém desenganado.
mui: forma reduzida de muito.


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Katty Rasga