quarta-feira, 29 de abril de 2009

Coerência e coesão textual: questões de gênero

Autora: Roselene dos Anjos

O que queremos mesmo dizer quando afirmamos que um texto ou um trecho dele está incoerente? E quando constatamos que a coesão está prejudicada em determinado trecho? No trabalho com os alunos em sala de aula, é preciso mostrar onde estão os problemas e, sobretudo, indicar possibilidades e pistas de como eles podem ser resolvidos. Esta é a questão que pretendemos começar a discutir aqui, buscando apontar como a coerência e a coesão devem ser avaliadas e estudadas com base na perspectiva dos gêneros textuais.

Dizemos que um texto é coerente quando percebemos a existência de uma amarração planejada entre as partes que o compõem, amarração esta que estabelece uma interdependência semântica: relação entre o sentido de cada uma das partes e o sentido geral do texto. Em outras palavras, a coerência está diretamente ligada à compreensão do sentido geral de um texto, isto é, à possibilidade de interpretação daquilo que se diz, escreve, ouve etc., sendo o que nos possibilita identificar se há uma unidade de sentido no texto.

Um dos mecanismos responsáveis pela interdependência entre as partes de um texto, isto é, por sua unidade de sentido, é a coesão: a ligação que se estabelece entre suas partes. Contribuem para estabelecer estas relações e ligações os elementos de natureza gramatical (como os pronomes, conjunções, preposições, categorias verbais), de natureza lexical (sinônimos, antônimos, repetições) e mecanismos sintáticos (subordinação, coordenação, ordem dos vocábulos e orações).

A coerência e os mecanismos de coesão não funcionam sempre da mesma forma em todos os textos, pelo contrário, se manifestam distintamente nos diferentes gêneros textuais, condicionados pela situação de produção. Vejamos rapidamente alguns exemplos.

Nos gêneros que se agrupam na ordem do narrar, a coerência existe, sobretudo, em função da organização temporal, isto é, do modo como se marca o tempo dos acontecimentos narrados. Mas esta organização está sujeita às especificidades do gênero. Por exemplo, em um conto de assombração, os elementos coesivos acionados para garantir a unidade de sentido são distintos daqueles mobilizados para a construção de um conto de fada: a introdução da narrativa, a seleção dos fatos a serem narrados, o foco nos elementos de cenários e na caracterização de personagens (seus gestos, suas feições, seu modo de ser e agir) são elementos que precisam estar adequados à finalidade do texto, ao efeito de sentido que se quer promover.

No caso do conto de assombração, estes aspectos devem estar voltados para o clima de assombro e tensão que caracteriza este gênero. As construções “era uma vez” e “em um reino encantado”, características de um conto de fadas, tornam-se inconsistentes para o conto de assombração, que tem como um dos fatores essenciais de sua organização a necessidade de construir a credulidade do leitor, definindo tempos e lugares com uma certa precisão.

Em muitos casos, a incoerência ou inconsistência de um texto decorre da inabilidade de selecionar o que é relevante para a situação de produção: um conto de assombração que se demora na descrição de alguns detalhes que não contribuem para a criação do clima de medo, por exemplo, pode perder o foco e tornar-se, se não incoerente, improdutivo para o gênero pretendido. Muitas vezes é este o problema que detectamos nos textos dos nossos alunos, sendo preciso mostrar a eles que a unidade de sentido a ser trabalhada no texto está diretamente relacionada com as características e as condições de produção exigidas pelo gênero.

Nos textos que se agrupam na ordem do argumentar, a coerência se constrói fundamentalmente pela ordenação lógica das idéias. Sabemos que há conectores específicos para expressar as diferentes articulações sintáticas - causa, finalidade, conclusão, condição etc – e que tais elementos devem ser usados adequadamente, de acordo com a relação que se quer exprimir ao desenvolver uma argumentação. Sabemos também que estes articuladores exigem a adequação dos tempos e modos verbais para funcionarem de maneira eficiente e possibilitar a coerência. Todos estes conhecimentos são fundamentais para o trabalho com a argumentação. Entretanto, saber isto não é suficiente para construir uma boa argumentação nos diferentes gêneros circunscritos neste grupo.

Convencer um conjunto de leitores de um artigo de opinião, por exemplo, é muito diferente do que convencer um interlocutor específico em uma carta reivindicatória. As estratégias argumentativas a serem mobilizadas para um e para outro caso se distinguem e precisam levar em conta elementos da situação de comunicação específica. Numa carta dirigida a um prefeito, por exemplo, argumentos que apelem para a sua condição de representante do povo e responsável pelo bem público podem e devem ser utilizados, mas é incoerente mobilizar este tipo de argumento quando o que se pretende é dialogar com um interlocutor que precisa ser convencido e chamado para o seu lugar de cidadão. Neste último caso, pode ser uma boa estratégia, trazer para o texto a voz de um cidadão que fala de igual para igual. Isto significa dizer que a coerência de um e de outro texto precisa ser definida não pelos argumentos em si, mas pelo seu funcionamento em cada situação comunicativa.

É por este motivo que vale a pena mostrar aos alunos a maneira como estes mecanismos funcionam no interior dos textos. Mas como é mesmo que isto pode ser feito?

Certamente esta pergunta não encontrará resposta desejável e produtiva se a opção for fazer os alunos decorarem uma interminável lista de conjunções coordenativas e subordinativas . A compreensão do funcionamento das conjunções, de seu sentido, de sua função argumentativa, das relações que estabelecem entre as idéias em um editorial ou em uma carta aberta é que pode evitar os períodos incoerentes do ponto de vista sintático, semântico e principalmente, do ponto de vista da situação comunicativa que se pretende.

Se o professor quer que seus alunos produzam textos coerentes e coesos, é preciso mostrar o funcionamento destes mecanismos na situação de produção específica em que o texto está inserido. Somente desta maneira o aluno vai se familiarizar com novas aquisições lingüísticas e perceber que solucionar um problema de coerência ou coesão em um texto não significa simplesmente trocar uma palavra, substituir ou modificar um conectivo, nem adequar os tempos verbais, trata-se, antes de mais nada, de perguntar sobre os elementos que envolvem sua produção.

Antes do ponto final

São muito comuns reclamações como não sei pontuar, não sei usar vírgulas... Estas dificuldades decorrem quase sempre da idéia de que as regras são rígidas e funcionam em quaisquer situações de produção. Muito mais produtivo do que insistir em regras é aliar o ensino da pontuação ao ensino dos mecanismos de coerência e coesão, mostrando a importância dela para o estabelecimento do sentido do texto em determinadas situações comunicativas. Assim como podemos usar conectores e outros elementos de coesão para articular vocábulos ou orações e indicar as relações existentes entre eles, os sinais de pontuação também contribuem para a "costura" do texto, orientando o leitor para a construção do sentido.



Publicado em: 12/02/2009