Quando eu tinha cinco anos de idade, costumava ir à oficina de meu avô e explorar os mais intrigantes objetos. Ele era um sapateiro. Não daqueles que, heroicamente, vivem a custa de pequenos consertos em botas ou sapatos; ele os construía do couro bruto até a última pincelada de tinta preta. Eu sentia o cheiro do couro, da tinta, da cola e do pó. Com cinco anos de idade, a imagem de um homenzarrão de avental de couro e uma faca afiada na mão impunha muito respeito. Mostrava-me o couro cru sobre o balcão, os moldes, os cortes, as formas, as máquinas de lixar que ele próprio inventara e o processo de fabricação até o produto final sobre a prateleira.
Mas não era essa imagem rude que me fascinava. Era seu jeito
carinhoso de pegar-me no colo, abrir um jornal e explicar com uma paciência
enorme o som de cada sílaba e o nome de cada letra. Não havia uma didática
especializada, não havia nenhum método pedagógico específico, mas fui
alfabetizado. Aprendi a ver o mundo inteiro através daquelas páginas enormes
suspensas no ar por mãos calejadas, rudes, ásperas.
O que fez a diferença? Por que ainda hoje me lembro de sua voz,
de suas correções e de seus elogios? Porque havia amor. As botas cano alto, os
sapatos de salto ou o meu processo de alfabetização recebiam uma espécie de
atenção que só existe naqueles que amam. Essa marca carrego ainda hoje.
Lembro-me do carinho, da dedicação, das broncas e dos elogios.
Hoje meu jeito de ensinar está impregnado pela memória de meu
avô. Provoco meus alunos, aponto falhas, elogio seus progressos e acima de
tudo, respeito-os.
Quando leciono, provoco reflexões, assumo o argumento contrário
e luto por ele até ser esmagado pela opinião bem fundamentada de meus alunos.
Faço o contrário também. A síntese é construída por todos nós.
Quando apresento um conhecimento já elaborado por um autor, vou trocando ideias
com meus alunos para que esse conhecimento possa ser incorporado, ligado,
relacionado aquilo que eles próprios já construíram, possibilitando-lhes a
aprendizagem significativa como diz o educador David Ausubel.
A maiêutica socrática em que uma ideia se faz nascer e em
seguida é lapidada por meio de diálogo argumentativo é o tom de minhas
conversas com os alunos.
Leciono em cursos de pós-graduação. Como trabalho final, os
alunos precisam construir um texto. Escolhem o tema, a forma de desenvolver o
artigo, as obras à serem pesquisadas, o problema a ser levantado e a hipótese a
ser defendida ou negada. Esses alunos tem a possibilidade de criar, de serem
autores. Em suas próprias vidas é isso que precisam constantemente fazer.
Quando desistem desse projeto, tornam-se escravos da mídia, da sociedade
capitalista, da ostentação dos bens materiais, da moda e do consumismo em
detrimento dos valores humanos de solidariedade, amizade, tolerância e de luta
por igualdade e justiça social.
Entretanto, surgem alunos que não "aderem" ao
processo. Preferem aulas expositivas nas quais tudo é sintetizado e explicado
de forma que possam, passivamente, receber as informações e anotá-las pensado
que suas anotações, uma vez memorizadas, podem ser transformadas em notas.
Triste realidade.
Os alunos que aderem ao processo são diferentes. São autores de sua própria
história, como diria Paulo Freire. Assim, o desafio de alcançar os alunos
passivos torna-se maior. É preciso dizer "não importa a nota, o que você
veio fazer aqui?" , "De que forma posso lhe ajudar?". Enfim, é
preciso colocá-los no colo, abrir um jornal e carinhosamente ajudá-los a
entender o mundo. Ajudá-los a perceber que não são as letras que importam, mas
o que elas dizem. De vez em quando, uma bronca, uma provocação, uma pergunta
para guardar. Outras vezes, é preciso mostrar o couro cru sobre o balcão e a
bota de cano alto na prateleira, deixando que a imaginação preencha o espaço
entre eles.
Meu avô faliu. A indústria de calçados aprendeu a fazer sapatos
em série e a diminuir os preços. Ninguém mais queria suas botas e seus sapatos.
Preferiam tênis ou sapatos que logo pudessem ser substituídos por outros mais
modernos, "da moda". Entretanto, meu avô jamais foi um fracassado.
Ele teve sucesso numa das maiores e mais significativas missões: educar.
MARCOS MEIER é mestre em
Educação, psicólogo, escritor e palestrante.